SÃO PAULO — A escassez de doses de vacina para Covid-19 atrasou o programa de imunização contra Covid-19 no Brasil, mas não tirou a vontade do brasileiro de receber as agulhadas para se proteger do coronavírus. Atualmente, o país conta com 63,7% dos habitantes totais com ao menos uma dose de imunizante no braço. Trata-se, por exemplo, de um número superior ao dos Estados Unidos (com 61,1% de todos os americanos com primeira aplicação, de acordo com o portal Our World in Data).
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Os planos do presidente Joe Biden de estender a vacinação a 70% dos adultos até o dia 4 de julho, por exemplo, foram frustrados diante da recusa de parcela dos americanos em receber as doses, por razões políticas, inclusive. Em março, a Universidade Monmouth, em Nova Jersey, divulgou uma pesquisa em que 24% dos entrevistados acima de 18 anos afirmam que não tomariam a vacina, se pudessem evitá-la.
No Brasil, porém, alguns episódios mostram que o discurso antivacina, uma preocupação recorrente nos Estados Unidos — plantado em toda sorte de plataformas digitais aqui e lá —, não pegou. Um dos exemplos mais recentes é a vacinação de jovens entre 15 e 17 anos na cidade de São Paulo, que atingiu 63% do público elegível em dois dias de aplicação. Outros exemplos estão atrelados à cobertura vacinal dos estados. Em Minas Gerais, 81,2% dos maiores de idade aceitaram tomar as primeiras doses, no Rio, 77,4% e, em São Paulo, 99,6% — de acordo com os governos estaduais.
Boa reputação
A alta adesão a receber as doses de vacina contra Covid-19, explicam especialistas, é fruto de uma série de fatores combinados. O medo de sofrer graves consequências atreladas à Covid-19, é claro, mas também a boa reputação das campanhas de vacinação.
— O brasileiro acredita em vacina. Acredita no Programa Nacional de Imunizações (PNI), na estrutura do SUS. Mesmo que tenha havido essa polarização em torno da vacina, essa ideia de que há vacina boa e vacina ruim, a população viu a necessidade de ser vacinada e buscou a vacina — diz Carla Domingues, que esteve à frente do PNI por oito anos (2011-2019).
Domingues explica, porém, que os grupos antivacina — embora aparentemente derrotados pela alta adesão da primeira dose — precisam ser combatidos com o fortalecimento do programa de imunização brasileiro. Para ela, inclusive, esses grupos negacionistas terão grande dificuldade de se instalar com relevância para a população.
— Desde as primeiras entrevistas que concedi, em janeiro, sempre disse que tinha certeza de que as pessoas iam comparecer ao posto de saúde. Mesmo com o presidente da República dizendo que as vacinas eram experimentais, que a população não ia ter adesão, eu sempre achei o contrário — afirma a especialista.
Wanderson de Oliveira, epidemiologista e secretário de Serviços Integrados de Saúde do Supremo Tribunal Federal (STF), acredita que, caso houvesse mais doses, o Brasil teria indicadores muito maiores do que os dos Estados Unidos, nas duas doses.
— À medida que a vacina chegou, ampliamos muito a cobertura vacinal. A população aderiu. Até negacionista no Brasil se fantasia para receber a vacina — diz Oliveira, que é também ex-secretário de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
Ele afirma, porém, que os grupos antivacinas, existem, sim, no país. Lembra, por exemplo, que representantes desses grupos já tentaram descredibilizar a imunização contra o HPV.
—Eles estão à espreita da gente. Diante de qualquer vacilo, esses grupos podem se fazer presentes. O PNI é mais antigo que o SUS e está arraigado à cultura de que a vacina protege — afirma. — Porém, eu não tenho certeza se teríamos a mesma adesão se fosse utilizada somente a CoronaVac, considerando o nível de desinformação que foi dado (contra esse imunizante).
Segunda dose
Oliveira explica, porém, que a comparação com os Estados Unidos não se deve limitar somente à primeira dose. Enquanto o Brasil está com 30% da população vacinada, os EUA chegam a 51%. A aplicação de duas doses, inclusive, é fundamental, sobretudo contra a variante Delta, inicialmente identificada na Índia e em franca expansão no Brasil.
Para se ter uma ideia do tamanho do trabalho que se avizinha, até ontem, o Ministério da Saúde contabilizava 9,3 milhões de pessoas com a segunda dose atrasada. Essa taxa tem tido sucessivas altas, conforme a vacinação para Covid-19 também atinge mais públicos.
— Precisamos compreender por que algumas pessoas que podem receber a segunda dose não voltam. Não conseguimos mensurar ainda as razões disso. Seria necessário realizar uma grande pesquisa, perguntar para as pessoas quais as suas razões, para saber onde estamos errando — diz Sergio Cimerman, médico do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e um dos membros da Câmara Técnica do PNI.
Entenda: As mudanças no calendário de vacinação, com redução do intervalo e terceira dose
Os especialistas ouvidos pela reportagem, porém, são unânimes em dizer que há um legado da ampla vacinação contra a Covid-19 que não pode ser desperdiçado. Trata-se de uma oportunidade rara de observar a mudança de curso no avanço de uma doença, diante do aumento gradual da população vacinada.
O fortalecimento da mensagem de que é preciso se vacinar, independentemente da doença, e mesmo fora de epidemias, faz-se ainda mais imperioso com a queda gradual dos indicadores de vacinação no Brasil. A vacina para combater a poliomielite, por exemplo, passou de 96,76% de cobertura em 2014 para 84,19% em 2019 (antes da pandemia). A de rotavírus humano, por sua vez, passou de 93,44% para 85,4% no mesmo período.
A hesitação vacinal, como é chamado esse efeito, é causada por diversos motivos, explica o presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Juarez Cunha. No alinhamento para que a pessoa receba a vacina é preciso haver confiança — em todo o sistema de saúde, nos governantes e nos próprios imunizantes. Além disso, é preciso ater-se à necessidade de buscar doses mesmo das doenças que estão controladas por conta de campanhas vacinais anteriores. Outro ponto importante é a conveniência, conseguir encontrar locais de vacinação, com horários de aplicação disponíveis e fácil acesso.— O antivacina convicto não podemos convencer. Os que acreditam e confiam nas vacinas são a grande maioria. Mas há os hesitantes, que têm dúvidas, para os quais temos que fazer o máximo para levar o recado da proteção individual e coletiva contra as doenças, o que é fundamental — afirma o especialista.
A câmara técnica que faz parte do Programa Nacional de Imunizações discute a intenção de renovar os alertas de vacinação contra as outras doenças para pegar carona no sucesso da vacinação de Covid-19. A ideia seria fazer publicações, por exemplo, em redes sociais, incentivando a procura por outros imunizantes.
Fonte: OGlobo