Grupo conservador católico com 700 membros é alvo de denúncias de humilhações, tortura, assédio e estupro por parte de ex-integrantes. Juíza proibiu também novos novos acolhimentos em unidades do grupo.
A Justiça de São Paulo determinou que todas as crianças e os adolescentes que estudam em regime de internato em escolas do grupo católico conservador Arautos do Evangelho voltem para casa até o dia 1º de julho.
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A decisão ocorre após reportagem da TV Globo revelar denúncias de humilhações, tortura, assédio e estupro que seriam praticados por integrantes do grupo católico conservador dentro da sede, que fica no meio da Serra da Cantareira, em Caieiras, na Grande São Paulo.
A juíza Cristina Ribeiro Leite Balbone Costa — titular da vara da infância e da juventude — determinou a proibição de novos acolhimentos, ou matrículas de crianças e adolescentes, em qualquer das unidades do grupo, em todo o território nacional.
Ela proibiu também a manutenção de ensino em regime de internato, obrigando que as escolas administradas pelos Arautos do Evangelho providenciem até 1º de julho, o retorno das crianças e dos adolescentes às famílias que morem em outras localidades.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo não sabe ao certo quantas crianças e escolas são administradas pelo grupo religioso em todo o país. A estimativa é a de que, antes da pandemia, só na capital, eram cerca de 200 crianças. Por isso a juíza cobrou que as instituições apresentem a lista de todas os estudantes matriculados em regime de internato em suas unidades.
O trabalho da defensoria começou após duas reportagens da TV Globo em outubro de 2019. De lá pra cá, 70 pessoas procuraram a defensoria, e os depoimentos de 40 delas foram gravados. A defensoria utilizou ainda laudos do núcleo de psicologia do Ministério Público de São Paulo.
Na decisão, a juíza citou uma determinação do Vaticano, do ano passado, para que os Arautos do Evangelho acabassem com as escolas em regime de internato.
Em outro trecho, a juíza afirma que, na ideologia desta instituição, os pais representam um perigo e são até considerados inimigos, por desvirtuarem os filhos dos caminhos religiosos.
Depoimentos de pais. Segundo Claudete das Graças Pedroso, mãe de um ex-aluno, é isso que ocorre com os estudantes. Ela mora no Paraná e retirou o adolescente no fim do ano passado de uma escola em São Paulo.
“Quando entramos dentro do carro para vir embora, começou a manipulação. Eles mandavam enviar mensagem, ele começou a chorar, ficar agressivo, ficar estúpido. Ali eu posso dizer que foi o meu inferno. Porque eu não reconheci meu filho”, disse.
“O menino que eu mandei 10 meses antes para lá não foi o que voltou. Estúpido, grosso, me ofendia de todas as maneiras. Só os Arautos eram perfeitos. Ele não queria comer, ele marchava com aquela roupa dentro de casa”, completou.
Também mãe de um ex-aluno, Patrícia Sampaio mora em Brasília e tirou o filho de uma das instituições três anos atrás.
“Se as pessoas tiverem plena consciência e quiserem participar do culto, fiquem livres. Mas as crianças não têm discernimento para isso”, disse.
Alex Ribeiro de Lima mora em São Carlos, no interior de São Paulo, e ficou até os 33 anos trabalhando para os Arautos do Evangelho. Segundo ele, o objetivo do grupo ao recrutar essas crianças “é justamente ter uma mão de obra barata, uma mão de obra escrava, como eles utilizam”.
O grupo católico conservador surgiu do rompimento com outra sociedade conservadora, a Tradição, Família e Propriedade (TFP). Em 1999, o monsenhor João Clá Dias, que fazia parte da TFP, fundou os Arautos do Evangelho.
Segundo o estatuto, com a missão de “levar a animação cristã das realidades temporais, segundo o seu próprio carisma”. Hoje, a associação tem 15 colégios no Brasil, com cerca de 700 alunos. Em 2001, os Arautos foram reconhecidos pelo Vaticano como associação religiosa.
‘Minha filha virou um robô’. “Minha filha virou um robô. Minha filha não existe, ela não tem amor pela gente, carinho, não tem nada”, diz a mãe de uma interna, que não quis se identificar.
O ex-interno Alex Ribeiro de Lima diz que, para os Arautos, a família tem que “sumir do mapa”. “Segundo eles, a família atrapalha o caminhar do jovem lá dentro. Eles ensinavam que a gente não tinha que amar nossos pais, pelo fato do que eles ensinaram para gente no mundo, como se tudo que ensinarem fosse o início do pecado”, afirma.
O “Fantástico” ouviu 23 pessoas em vários estados do Brasil, e no exterior. Doze delas estão citadas no inquérito aberto no Ministério Público. Todas relatam situações parecidas.
A mãe de um ex-interno diz que o filho tinha medo de ir para casa. “Meu filho achava mesmo que o mundo ia acabar e que a única salvação dele era dentro dos Arautos do Evangelho”, diz Patricia Sampaio.
De acordo com os relatos, os jovens são preparados para a “bagarre”, uma espécie de castigo universal. Essa moça, que foi interna dos arautos durante cinco anos, explica como seria aplicado esse castigo.
Um dos relatos diz: “Deus iria punir a terra por todos os pecados que foram cometidos aqui. Então, a natureza se revoltaria contra o homem, e o demônio apareceria e aconteceria um confronto entre os supostos filhos de luz, e os filhos das trevas. Os filhos de luz são os Arautos e os das trevas somos todos nós. O resto”.
Um ex-interno conta que chegou a fazer cursos de tiro. Um deles, de tiro parado. O outro, de tiro em movimento, como mostram alguns certificados.
“O motivo de eu ter feito este treino de tiro foi para uma eventual preparação de bagarre porque eles diziam internamente que estavam na iminência de serem atacados por pessoas que odiavam a religião, que odiavam a Igreja Católica.”
Alex passou 18 anos lá dentro e diz que ainda se recupera dos traumas. Ele lembra, por exemplo, de um ritual que podia durar horas e que ele classifica como lavagem cerebral: “Lá eles também têm capítulos. Você deita no chão e vem um superior e começa a fazer uma série de acusações. Só que existe uma tática – né? – nesses capítulos que eles fazem. Controlar a pessoa que está ali deitada, para que a pessoa se sinta um grande pecador, uma pessoa que não vale nada. E eles começam a fazer essa lavagem cerebral na mente das pessoas”.
Ex-internas também denunciam abuso sexual e estupros. Em um boletim de ocorrência feito em maio deste ano, uma das moças contou que, aos 13 anos, foi acordada pela encarregada do alojamento para tomar banho. Percebeu que estava com sangramento e a região íntima irritada e inchada. Ela acredita ter sido dopada.
Outra ex-interna, que atualmente vive no Canadá, informou ao Ministério Público que, dos 12 aos 16 anos, sofreu com as carícias que João Clá fazia nos seus seios e nas nádegas. A colombiana Maria Paula veio com 11 anos para o Brasil. Ficou cerca de dois anos no castelo. Ela relatou ao Ministério Público que foi vítima de João Clá.
“Ele me chamou depois da missa, entramos na sacristia e aí, quando tava sacristia, vi que ele deu um beijo em uma menina. Eu fiquei pensativa: será que esse beijo é na boca ou na bochecha? Então quando ele me deu um beijo na boca, eu fiquei pensando: ‘Deus o que é isso?’ Uma menina que vivia na Colômbia comigo também me contou que ele deu um beijo na boca. Então eu perguntei e ela disse que bom, então recebeu a graça”, disse.
Há mais de dez anos, João Clá teve um acidente vascular cerebral. Em 2017, renunciou ao cargo de presidente do grupo.
Arautos negam. Três representantes dos Arautos do Evangelho negaram as denúncias.
“Essa afirmação de beijo na boca é calúnia. Irmã, a senhora viu alguma vez isso? Afirmar que um boletim de ocorrência possa ser indício de prova. Boletim de ocorrência é um primeiro passo. É um ato unilateral, de alguém que vai na delegacia e faz uma denúncia. A delegada já ouviu. Ouviu inclusive a irmã que pode dar o testemunho dela agora, porque ela também foi colocada como cúmplice disso. Essa investigação vai seguir o seu curso e, quando for concluída a investigação, aí sim cada um vai saber o que fazer. Tem até direito de recorrer à Justiça como denunciação caluniosa”, afirmou o padre Alex Barbosa de Brito, sacerdote dos Arautos.
“Fui na delegacia por conta daquela denúncia, que posso afirmar é inteiramente falsa, caluniosa até”, completou a Madre Mariana, superiora dos Arautos.
Ao “Fantástico”, os religiosos repudiaram todas as acusações e disseram que o sistema de ensino que eles utilizam nos colégios segue o que é determinado pelo Ministério da Educação. Os Arautos se dizem vítimas de perseguição: “Nós estamos diante de uma situação, de uma campanha de difamação feita por desafetos da instituição, desafetos da igreja em geral. Uma campanha de perseguição religiosa onde a igreja católica está em foco e a instituição em particular”. (G1)