Ao discutirmos a promoção da igualdade racial, se coloca como um fato dado e amplamente debatido a perspectiva de que a busca por uma maior igualdade entre sujeitos de matrizes raciais distintas em nosso país engendra a necessidade de mudanças no eixo cultural e no eixo socioeconômico. Isso se deve por um conjunto amplo de questões que restringem as oportunidades e os direitos em saúde, educação, mercado de trabalho, renda, moradia, qualidade de vida e segurança da comunidade negra inscrita no Brasil.
Sim, o Brasil é um país racista e este racismo é estruturante pois acaba por determinar quais são os espaços, as oportunidades, as inserções e as trajetórias de homens e mulheres que nascem demarcados por caracteres negroides e que possuem uma identidade inflexionada pela cultura africana que, junto dos legados indígena e português, fundou o nosso país.
Faça uma reflexão simples considerando as seguintes inquietações: 1) quantos médicos negros já lhe atenderam? 2) quantos professores negros você já teve? 3) quantos negros você já encontrou trabalhando em bancos, no atendimento de lojas, ou então, em um escritório de advocacia? Se você já, afortunadamente, verificou a presença de negros nesses espaços, faça uma segunda comparação não esquecendo que cerca de metade da população brasileira é preta ou parda: A) quais os postos laborais que estes indivíduos negros ocupavam nas escolas, nos hospitais, nos bancos, nos escritórios de advocacia e nos estabelecimentos comerciais nos quais os vi trabalhando? B) comparativamente, havia 50% de pretos ou pardos nesses locais? Panoramicamente, estes questionamentos ajudam a ilustrar os motivos pelos é afirmável que o racismo no Brasil é endêmico e estrutura nossas relações sociais, políticas, culturais e econômicas
Discutir os motivos que levaram a construção do racismo social e institucional no Brasil não é o objetivo deste pequeno texto, todavia, seria interessante um contato prévio do leitor com uma densa bibliografia contemporânea denunciadora deste processo que, por sua vez, está ancorada em centenas de pesquisas científicas (detentoras de metodologias avançados atreladas às investigações empreendidas nas Ciências Humanas e Sociais). Tais trabalhos mostram, em diferentes níveis e aspectos, como se estrutura o racismo em nosso país e como esse fenômeno acaba por articular a maneira como nós, brasileiros, nos relacionamos cotidianamente.
Com esperança de fazermos deste veículo comunicacional um espaço duradouro de construção de saberes e trocas de experiências tentaremos, aos poucos, discutir ainda mais estes diferentes aspectos circunscritos ao advento do racismo no Brasil. Por hora, vamos fazer um recorte e compreender por que as cotas raciais nas universidades são importantes e, nesse sentido, por quais motivos a Universidade Estadual de Maringá passa a desenvolver uma ação afirmativa que representa aquilo que há de mais moderno e avançado em termos de políticas públicas.
Para reverter e mitigar os processos desiguais condicionados pelo racismo brasileiro temos, portanto, que empreender políticas públicas afirmativas. Nesse diapasão, ações ligadas à Educação buscam fomentar transformações no eixo cultural, afinal, ela é o espaço privilegiado em nossa sociedade para a construção de uma cultura engendrada pela transmissão de conteúdos formais, assimilação de valores cívico-democráticos e promoção da cidadania de modo a forjar, nos educandos, um pensamento crítico acerca de suas realidades.
Para a Educação, de modo mais efetivo, temos em nível federal a Lei 10.639/2003 que, por sua vez, obriga a construção de um ambiente educacional afeto à Educação das Relações Étnico-Raciais e ao Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Em termos de reversão de desigualdades socioeconômicos, inserção no mercado de trabalho e representação identitária no serviço público, também em nível federal, temos as Políticas Afirmativas de Cotas Raciais em Concursos Públicos Federais determinada pela Lei nº 12.990/2014.
Diante deste panorama, as cotas no Ensino Superior nas Universidades e nos Institutos Federais (Lei nº 12.711/2012) constituem uma política afirmativa federalizada, privilegiada e altamente moderna, afinal, a sua implementação age conjuntamente no binômio socioeconômico e cultural. Ou seja, “mata dois coelhos com uma única cajadada só”, otimizando deste modo, a promoção da igualdade racial (compromisso acordado/firmado mundialmente pelo Brasil em diferentes organismos diplomático-internacionais, tais como a ONU e a OIT). Veja, com a inserção educacional no Ensino Superior os negros terão melhor qualificação profissional e, com isso, maiores condições de competir em um mercado de trabalho que, notadamente, exclui a presenças deles nos postos com maiores vantagens econômicas e representacionais.
Somado a isso, temos a presença negra dentro das universidades que, essencialmente, são espaços fomentadores de educação, pesquisas e projetos de extensão que, em um novo panorama racial, sofrerão inflexões moduladas por discussões atreladas às questões raciais, afinal, muitos alunos negros, mesmo não sendo uma obrigatoriedade, desenvolverão tais atividades e, em relação a elas, interporão os dilemas ligados ao “ser negro em nosso país”; este processo, em termos de produtos, pode se converter em: 1) relações educacionais mais complexas e coerentes justamente porque discutem, pautam e reconhecem o tema da questão racial em seus processos de desenvolvimento (por exemplo, um aluno de enfermagem não pode discutir hipertensão e anemia falciforme em nosso país sem, com isso, aludir para o fato de o contingente populacional brasileiro que incisivamente é afetado rotineiramente por essas doença é o negro); 2) estudos, em diferentes áreas do conhecimento, vinculados tematicamente com a questão racial, ou então, trabalhos que engendrem discussões mais polivalentes, interdisciplinares e intersetoriais afetas à questão racial em níveis locais, regionais ou nacional; 3) ações de extensão que atendam a comunidade negra que há séculos estão excluídas de serviços públicos relevantes, ou então, de uma interação/integração com as nossas universidades.
As Cotas nas Instituições Federais de Ensino Superior já é uma política afirmativa federalizada desde 2012. Nesse sentido, coube aos Entes Federados progressivamente adotar essa política em suas práticas institucionais. No caso das universidades paranaenses, essas teriam autonomia para empreender as cotas raciais em seus vestibulares, com isso, ir paulatinamente implantando esta política afirmativa.
Nota-se que a Universidade Estadual de Maringá era, até recentemente (06/11/2019), a única instituição de ensino superior paranaense que não desenvolvia uma política afirmativa de cotas raciais em seus vestibulares (discutir nos motivos para isso exigiria a realização de pesquisas e, por conta disso, não entraremos aqui nesta questão).
E vejam, as cotas raciais no ensino superior, apesar de implementação recente no Brasil, já estão sendo estudadas no sentido de observar/analisar seus efeitos e resultados por meio de estudos convergentes a este desígnio. Nesta direção, nas instituições de ensino superior aonde as cotas foram implementadas constata-se que os alunos cotistas: A) são os que menos abandonam seus cursos de graduação; B) são aqueles que possuem as maiores notas; C) são os que terminam seus cursos em maior conformidade com o tempo mínimo para a titulação; D) e são os mais aprovados em pós-graduações no Brasil e no exterior.
Como é possível notar, para além das importantes determinações histórico-ressarcitórias ligadas à política cotas raciais, esta política afirmativa possui eficiência e, certamente, produz resultados que vão ao encontro de uma sociedade mais justa, desigual, equânime e democrática. É na direção destas valiosas intenções que a Universidade Estadual de Maringá está convergindo e, certamente, se transformando e aperfeiçoando.
Não devemos esquecer que o processo que levou a construção das cotas raciais na UEM engendrou uma intensa luta articulada entre: 1) movimentos sociais, tal como como o Coletivo Yalodê-Badá; 2) grupos e núcleos de pesquisa, tal como o NEIAB-UEM (Núcleo de Estudos Interdisciplinares Afro-Brasileiros da UEM); 3) alunos do Ensino Médio de Maringá e Região (principal segmento social afetado por esta política afirmativa); 4) graduandos e pós-graduandos da UEM ancorados em suas respectivas lutas estudantis e interseccionalidades; 5) grupo de professores, pesquisadores e servidores da UEM que unificaram-se para defender a implantação das cotas nesta universidade.
De modo geral, é esse o novo panorama no qual a Universidade Estadual de Maringá se insere e nós, enquanto professores e instituição de ensino, estamos ansiosos para receber as contribuições que a comunidade negra tem a nos oferecer.
[1] Professor Colaborador da Universidade Estadual Maringá Campus Regional de Goioerê-PR (UEM-CRG), vinculado ao Centro de Ciências Exatas (CCE), especificamente ao Departamento de Ciências (DCI) e ao Programa de Pós-graduação em Rede Nacional para o Ensino das Ciências Ambientais (PROFCIAMB). Somado a isso, é consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas (PNUD-ONU) especializado na temática de Promoção da Igualdade Racial (PIR) desenvolvida junto à Secretaria Nacional de Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR-MMFDH). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6129448426028004. E-mail: [email protected].