A escritora maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1911), mulata, nascida em São Luís, capital da então província do Maranhão, filha bastarda de um escravo (João Pedro Esteves) com Leonor Felipe dos Reis (branca, provavelmente filha do senhor de Esteves), ainda criança mudou-se para a casa de uma tia materna, em Guimarães, aspecto fundamental para a sua formação elementar.
Já adulta, aos 22 anos, Maria Firmina foi aprovada em um concurso público para lecionar em uma escola de primeiras letras em Guimarães, função que ocuparia até o início de 1880, ano em que se aposentou. O magistério era um atributo feminino, por a escola primaria ser entendida na época como uma extensão do ambiente familiar, e, portanto, onde a mulher também exerceria sua “vocação” até casar-se, contudo, Maria Firmina nunca se casou.
Após sua aposentadoria, abre uma escola mista, para meninos e meninas pobres, causando escândalo, pois o “normal” no século XIX eram escolas separadas, uma vez que a educação era elitista, e meninas poderiam, no máximo, alfabetizar-se e aprender coisas úteis ao trabalho doméstico e à maternidade; em geral parariam os estudos por aí, enquanto os meninos, se a família tivesse posses, prosseguiriam seus estudos na Europa ou nas faculdades de direito, engenharia e medicina dos grandes centros brasileiros. Por causar escândalo aos padrões da época, a escola foi rapidamente fechada.
Em um contexto em que poucas mulheres escreviam, por estarem estigmatizadas pela estrutura patriarcal, que atribuía a elas uma “vocação” aos cuidados do lar e naturalizava a obrigação feminina de obediência irrestrita ao marido, o provedor do lar e chefe da família, poucas mulheres publicavam e, quando tinham algum espaço, o perfil destas era, necessariamente, mulheres brancas e de elite que escreviam sobre culinária, e, ainda mais raramente, poemas e contos, nesse caso, geralmente valendo-se de pseudônimos masculinos.
A autora, como tantas outras mulheres do século XIX, escondeu-se sob um pseudônimo, porém assumindo-se como mulher assina seus textos como “Uma maranhense”, mesmo codinome utilizado para assinar Úrsula, em 1859, tido como primeiro romance de autoria feminina e o primeiro a apresentar um discurso antiescravista na literatura brasileira
Enquanto mulher, a própria Maria Firmina reconhece a invisibilidade da mulher na sociedade patriarcal de sua época: “pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Temos, desse modo, dois aspectos muito relevantes para a análise deste romance: é de autoria de uma mulher negra e traz um discurso antiescravista até então inexistentes na literatura brasileira.
Outrossim, Úrsula é escrito ainda na fase nacionalista do Romantismo, que promoveu um apagamento do negro, visto socialmente como um mero objeto vivo de trabalho e não como um ser humano, e também onze anos antes do clássico Navio Negreiro, de Castro Alves (1869), ícone da Geração Condoreira, surgida no bojo da campanha abolicionista.
O romance, uma clássica estória de amor, não traz os negros como protagonistas, mas os traz como seres humanos, com dignidade e pensantes de sua condição. Na obra, há três personagens escravizados, sendo os principais Túlio e Suzana.
O personagem Túlio é apresentado, juntamente com o protagonista da estória: o branco Tancredo, no capítulo intitulado ‘’duas almas generosas’’, cuja ação principal é o salvamento de Tancredo. Generoso era o escravo, que ajudara o protagonista, ferido em uma queda de cavalo e o deixa aos cuidados da filha de sua senhora (Úrsula), acontecimento que inicia a trama central – o romance entre Úrsula e Tancredo, impedido pela sanha de Fernando, que a deseja.
O jovem branco, em gratidão pelo socorro, compra a liberdade de Túlio e é interessante frisar que Tancredo vê Túlio como igual, seu amigo e salvador. Reis evoca a visão de um negro-escravo sobre sua situação de propriedade e cativo que, todavia, apesar dessa condição, tem bom caráter e não guarda mágoas. Vejamos esta passagem:
[…] – A minha condição é a de mísero escravo! Meu senhor (…) Ah! O escravo é tão infeliz!… Tão mesquinha, e rasteira é a sua sorte” (REIS, 2004 p. 27).
[…] E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como a sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso[…] (REIS, 2004 p. 23).
Nessa passagem, através de Túlio, a autora apresenta uma ruptura com a visão do negro imbecilizado e grosseiro, sob o estigma da sua suposta inferioridade natural/biológica, social/moral, religiosa e intelectual, pilar do discurso escravista. Já por meio de Susana, apresenta uma mulher escravizada, que se lembra nostalgicamente da vida na África, onde era feliz:
Liberdade! Liberdade… ah! Eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer nessa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! Meu filho! Mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor da minha alma: – uma filha, que era a minha vida, as minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar nossa tão santa união. E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!
Como vimos, mãe Suzana tem a saudade da África, a qual o discurso da época afirmava ser um lugar de bárbaros, desumanos, comparada ao inferno, onde só habitavam feras e seres subumanos. Esse é o contradiscurso de Suzana, ao qual Suzana, ao combater, associa o processo da escravidão, que tratava as pessoas como ‘’coisas’’, o que é uma barbaridade. Outrossim, ela vale-se do ideário religioso para passar a ideia de igualdade entre os seres humanos, inclusive os escravos. Algo não novo, mas bastante questionado na sociedade escravista:
Senhor Deus! quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!… a aquele que também era livre no seu país… aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista.
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A intenção deste texto, um pouco diferente do habitual, foi apresentar um pouco da trajetória dessa grande mulher, Maria Firmina dos Reis e sua obra, pioneira em denunciar os dramas e as dores das pessoas escravizadas no Brasil.
A quem interessar a leitura, eu tenho o livro em PDF e posso disponibilizar.