“Se eu tivesse que achar um pai e uma mãe para o preconceito, um é a falta de conhecimento e o outro é a angústia do medo” – Leandro Karnal
Vivemos em uma sociedade preconceituosa, até aí, nenhuma novidade. Mas, por meio dessa afirmação, tão genérica quanto consoladora, há aqueles que insistem em afirmar, e talvez acreditar, serem uma ilha de tolerância cercada de preconceituosos. Essa ideia é tão comum quanto hipócrita. Afinal, sejamos francos: todos temos algum tipo de preconceito, por mais sutil e contido que ele seja.
Porém, a ideia de que o problema sempre está só “nos outros’’ escamoteia uma obviedade por vezes muito incômoda: não pode haver sociedade sem indivíduos e, como bem resume a frase de John Donne, ‘’Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo’’. Ou seja, indivíduo e sociedade são duas faces da mesma moeda. Porém, como afirmara Nietzche, ‘’Insanidade é a exceção em indivíduos, mas a regra em grupos.’’. Finalmente, o que indivíduos desse grupo chamado sociedade representam?
Somos tolerantes? Pode até ser. Mas tolerar significa respeitar?
Não! Tolerar é ter paciência para suportar determinada situação desagradável ou ofensiva, com desdém, às vezes até com ódio, rancor, mas há preocupação em se manter as aparências. Sabe aquela pessoa que diz que há determinadas coisas com que todo mundo concorda, mas é constrangedor se admitir em público?
Essa ideia, muitas vezes, só replica preconceitos e estereótipos. E, pior, legitima algumas hierarquias entre os seres humanos, baseadas em critérios como cor/raça, gênero, sexualidade e escolha religiosa. Já respeitar é entender que as pessoas têm o direito legítimo de pensar, agir e fazer escolhas diferentes umas das outras, e que, mesmo assim, ninguém é melhor que ninguém. Mas sabemos que, na maioria das vezes, não é bem assim que as coisas acontecem. Parafraseando Carlos Drummond de Andrade, há ‘’uma pedra no meio do caminho’’. No caso, uma conjunção adversativa, que, como o próprio nome indica, estabelece uma ideia de oposição, uma contradição, o ‘’mas’’.
Quem nunca ouviu frases do tipo ‘’ Eu não sou preconceituoso, mas sabe como é…’’, ‘’Eu não tenho nada contra, mas…’’ ou ‘’ Eu não gosto de falar mal da vida alheia, mas…’’? O que elas têm em comum? A negação do preconceito individual, que expressa o ‘’eu ‘não’’ que as inicia e o ‘’mas’’ que reifica a ideia da sociedade, o coletivo que, ao mesmo tempo que representa a todos (ou a maioria), não representa ninguém em particular, pois, como fala o dito popular, toda regra tem sua exceção.
E, apoiados nessa máxima, somos todos exceções, estabelece-se um paradoxo, no qual ninguém representa as regras ao mesmo tempo em que elas representam o todo. Não que normas sociais sejam ruins ou desnecessárias, porém, o discurso de que ‘’é assim desde que o mundo é mundo’’ quase sempre é um eufemismo para todo o tipo de preconceitos, que, de tão antigos parecem naturais. Mas, como individualmente admitir-se preconceituoso é desconfortável , a ‘’sociedade’’ permite que atribuamos a terceiros práticas e comportamentos pessoais de muitos que, negados no âmbito particular, o coletivo (social) nos permite expressar nossos preconceitos sem o ônus de ter que declará-los.
Além disso, temos outro tipo de manifestação desses discursos, que, quando manifestos em particular, são sempre suavizados por coisas do tipo “É só a minha opinião’’, ’“O mundo tá ficando muito chato”, ou que vivemos em um tempo de muito “mimimi”, no qual ‘’tudo é racismo’’ e onde ‘’gays querem dominar o mundo’’ e ameaçar a moral dos bons costumes. E de opinião em opinião, o preconceito vai gerando violência… Não? Vamos a duas charges bastante didáticas:
Ah, lembro ainda esta esquete do ‘’Porta dos fundos’’ que ilustra bem o que é esse tal ‘’mundo chato’’ (ver no link https://www.youtube.com/watch?v=KP4wBBZRCio)
Exagero?
Bom… Em relação aos homossexuais e a homoafetividade, a maioria das pessoas (individualmente) se diz tolerante (e não respeitosa) a essas relações, dizendo inclusive ‘’Ah, eu tenho amigos gays’’, mas sempre há um ‘’porém’’. Tipo ‘’Nada contra, mas a gente sabe que não é certo’’, sempre tentando naturalizar o preconceito, ao mesmo tempo se mostrar ‘’bonzinho’’ por tratar ‘’como iguais’’ essas pessoas, apesar da ‘’vida errada’’ que elas levam. Isso é uma tremenda hipocrisia.
Ademais, a diferença entre os ‘’bonzinhos tolerantes’’ e os assassinos que contribuem para se engrossar as estatísticas de mortes violentas de homossexuais no Brasil devido à sua sexualidade (318 em 2015) é definida por uma linha bastante tênue, à medida em que a razão desses homicídios é tão somente a radicalização torpe de um discurso socialmente difuso, que é errado, que é uma aberração, que fazem esses homicidas acreditarem estar fazendo um favor à sociedade.
O mesmo princípio se aplica ao racismo. É comum ouvir-se que, sendo um país mestiço e plural, não há nem pode haver racismo no Brasil. Mas, nas blitz policiais, é evidente o perfil do ‘’suspeito preferencial’’, ou seja, cor da pele ainda pode definir o que é uma ‘’atitude suspeita’’. Não? Reproduzo abaixo um scanner de uma reportagem do jornal Diário de São Paulo, publicada em 2013, que ilustra bem a questão.
Resultado disso? Segundo o portal Terra, 71,4% das vítimas de homicídio no Brasil são negras (veja o link: https://noticias.terra.com.br/brasil/homicidios-no-brasil-714-das-vitimas-sao-negras,6e8009c39f0f5410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html) Tais estatísticas refletem uma sociedade na qual inexiste racismo?
A mesma sociedade que tem ditos populares como “A coisa tá preta”; “É coisa de preto”; “Só podia ser preto” e “Negro quando não suja na entrada, suja na saída”… Coincidência? Acaso?
Enfim, paremos para analisar nossas práticas cotidianas, lembrando que, sendo a sociedade um coletivo de indivíduos não correlatos que se retroalimentam e que, para ‘’os outros’’, ‘’os outros’’ somos nós, é assim que determinados comportamentos se tornam ciclos viciosos que fazem do preconceito uma história mais velha que andar para frente.