Ao longo do mês de abril, o número de casos de violência contra crianças e adolescentes atendidos pelo Hospital Pequeno Príncipe (HPP), referência no atendimento pediátrico, caiu pela metade. Em um cenário de normalidade, isso até poderia ser uma boa notícia, um indicativo de redução nos índices de violência. Em tempos de pandemia e isolamento social, no entanto, servem como um alerta de que aumentou o número de casos “invisíveis”, que acabam não sendo descobertos ou notificados às autoridades.
Algumas informações, inclusive, ajudam a reforçar a hipótese de subnotificação de casos. Uma delas é que em 2019 o HPP bateu recorde de atendimentos a casos de violência, com 689, crescimento de 17,6% na comparação com o ano anterior. Só neste ano, até o dia 20 de abril, foram 171 pacientes atendidos vítimas de negligência, violências sexual, física e psicológica, por exemplo.
O principal ponto, porém, é que enquanto o número de casos atendidos diminuiu no último mês – a média mensal é de 60 registros, mas o Hospital atendeu menos da metade disso em abril -, as situações registradas acabaram apresentando um quadro de maior gravidade.
Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Iolete Ribeiro da Silva explica que o atual cenário amplia a vulnerabilidade de crianças e adolescentes a situações de violência no ambiente doméstico/familiar. Isso acontece porque as vítimas estão dentro de casa com seus agressores, sem acesso à rede básica de proteção, formada principalmente por escolas, que estão fechadas, e pelas unidades de saúde, que estão focando no atendimento aos casos suspeitos de Covid-19.
Dos 689 casos atendidos pelo HPP no ano passado, por exemplo, a maior parte (73,8%) aconteceu no ambiente doméstico, com destaque para os registros de violência sexual (66,3% do total, com 457 registros). O agressor, via de regra, é alguém próximo da vítima, não raro alguém da própria família. E outro fato preocupante é que em 65,9% dos casos atendidos os pacientes estavam na Primeira Infância, ou seja, tinham até seis anos de idade.
Acontece, porém, que até os sete anos de idade as crianças não entendem ao certo os sentidos figurados, estão ainda exercitando essa linguagem, conforme explica a psicóloga Daniela Prestes, uma das responsáveis pelo atendimento no HPP de crianças e adolescentes vítimas de violência.
“Por isso, devemos desmistificar a ideia de que o agressor é um monstro. Por vezes, a dificuldade da denúncia está atrelada a isso. Como um tio querido por toda a família é um monstro? Como o padrasto tão carinhoso com a mãe é um monstro? O primo que promove os churrascos familiares pode ser um monstro?”, ressalta a especialista.
Denúncia pode ajudar a salvar vidas. Para ajudar na proteção da juventude, uma das medidas mais importantes é estar atento aos sinais de negligência e da violência. Alguns desses sinais são o choro excessivo; hematomas em várias partes do corpo e de diferentes colorações; fraturas próximas das articulações, em costelas ou de crânio; desnutrição; aspecto de má higiene; distúrbios alimentares; medo exagerado; agressividade; e irritação. E em tempos de distanciamento social, é preciso ficar alerta para outros aspectos, como fatos que sejam muito diferentes do padrão da vizinhança de cada casa, como gritos e choro excessivo de uma criança.
Em Curitiba e no Paraná, há vários serviços que recebem denúncias de casos suspeitos de violência, sendo que os relatos podem ser feitos de forma anônima. Na Capital, por exemplo, a prefeitura disponibiliza o serviço telefônico 156. Há também o Disque-Denúncia estadual, pelo número 181, e o Disque-Denúncia nacional, pelo Disque 100. A ligação é gratuita. “Muita gente acha que os pais são ‘donos’ da criança. Mas isso não é verdade. É responsabilidade de toda a sociedade proteger essas crianças e adolescentes”, afirma a psicóloga Daniela Prestes.
Neste ano, inclusive, a campanha “Pra Toda Vida – A violência não pode marcar o futuro das crianças e adolescentes”, do HPP, tem como foco conscientizar a sociedade sobre a importância de uma atuação conjunta para combater a violência. O mote da campanha é #fiqueemcasacomamor, visando reforçar a importância de que o lar precisa ser um local seguro para crianças e adolescentes de todo o Brasil, principalmente durante o período de pandemia da Covid-19.
Exploração e violência sexual em tempos de pandemia. Uma das preocupações da Conanda é que o aumento do desemprego gerado pela crise da Covid-19 contribua para o crescimento da exploração sexual de jovens por pequenas trocas, junto à subnotificação já habitual na esfera da violência sexual. “Se antes já víamos meninas e meninos trocando sexo por coisas básicas, sendo explorados, principalmente em locais periféricos, a tendência agora é que com os efeitos sociais do vírus esse problema aumente bastante. A troca por coisas que a maior parte das pessoas consideram ‘supérfluas’, – como roupas, aparelhos e créditos para celular – faz com que a sociedade naturalize o crime e culpabilize as vítimas”, declara a secretária executiva da coordenação da Rede ECPAT Brasil, Amanda Ferreira.
Outra questão é o fácil acesso de crianças e adolescentes à pornografia. O site adulto PornHub divulgou recentemente que teve um aumento médio de audiência de 13,1% no Brasil desde o início do surto. “A maior permanência das crianças e adolescentes nas redes sociais, que tem ocorrido nestes meses de confinamento, as tornam mais vulneráveis às diversas formas de violência sexual. Isto foi confirmado em relatório da polícia da União Europeia (Europol), que identificou um aumento da produção e distribuição de pornografia infantil pela internet neste período. É um quadro terrível que deve se repetir por aqui”, enfatiza a diretora-presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer.
Os dados da Europol, citados por Luciana, apontam que entre 17 e 24 de março deste ano foi observado um aumento de 25% no número de conexões para download de materiais relacionados a pedofilia na Espanha, uma tendência que também foi observada em outros países europeus e que coincide com o período de isolamento social.
RÁPIDA. Dia Nacional de Enfrentamento. Nesta segunda-feira (18 de maio), celebra-se o Dia Nacional de Enfrentamento à Violência contra Crianças e Adolescentes, data na qual a sociedade é relembrada da importância de assumir a responsabilidade de prevenir e enfrentar o problema da violência, em especial a sexual, praticada contra jovens no Brasil. Esse dever social, inclusive, está positivado na legislação pátria, mais precisamente no artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o qual diz que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público” assegurar a efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. (Bem Paraná)